Saúde e Qualidade de Vida nas Pessoas com Perturbação de Humor (Paula Pombo e Rute Brites)

11-11-2011 15:34

 

A qualidade de vida é, hoje em dia, um termo do senso comum. Mas a sua definição não é consensual, tendo existido várias tentativas nesse sentido. Em 1995, a Organização Mundial de Saúde definiu este conceito como “a percepção do indivíduo da sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objectivos, expectativas, padrões e preocupações”.

Abrange, assim, uma diversidade de aspectos, não apenas intra-individuais mas interpessoais e ambientais. É, então, um conceito complexo.

Se pensar em “qualidade de vida” coloca algumas questões pela complexidade de factores envolvidos, fazê-lo relativamente às pessoas que experienciam perturbações a nível do humor, acresce-nos a tarefa de algumas especificidades.

De facto, quem sofre desta perturbação, e devido à presença de alterações decorrentes da sintomatologia apresentada, quer se tratem de estados de euforia, quer se tratem de estados depressivos, pode facilmente colocar-se em situações que põem em risco a sua própria qualidade de vida.

Os objectivos de vida de cada um são, assim, susceptíveis de sofrer um enviesamento sempre que surgem momentos, mais ou menos prolongados ou acentuados de descompensação. Se, por um lado, a presença de ideias de grandiosidade nos momentos em que domina a euforia, tanto a nível de expectativas como da percepção das próprias capacidades individuais, pode trazer dificuldades na relação com os outros a nível pessoal e profissional, também o domínio do polo inverso, o polo depressivo, com as ideias recorrentes e, por vezes, avassaladoras que o acompanham, de autodepreciação e sentimentos de inutilidade e incapacidade de lidar com as mais variadas situações, podem influenciar no modo de interacção com os outros, logo no seu modo de estar na vida.

Os problemas laborais começam, assim, facilmente a desenrolar-se, problemas com o cumprimento de horários, com o respeito pelas normas, regras e tarefas, mas também a nível da relação interpessoal, especialmente em momento onde a irritabilidade, o desprezo e o sentimento irrealista de grandiosidade dominam, e que alternam com momentos de apatia e de desinteresse profundo pelo mundo e pela vida social, conduzindo frequentemente a fases de isolamento com ausências mais ou menos prolongadas ao serviço.

Ora, as consequências mais frequentes, de prever, o absentismo e/ou o despedimento podem trazer consequências, por vezes nefastas para a manutenção de uma satisfatória qualidade de vida, mas também para o equilíbrio, por vezes tão periclitante de quem é bipolar.

Estas perturbações na vida profissional acompanhadas de comportamentos disruptivos desencadeiam, também, alterações a nível pessoal e familiar. Surgem conflitos, desentendimentos, e até mesmo rupturas. A pessoa fica, assim, desapoiada, desorientada e sem se conseguir estruturar por si só.

O cuidar da saúde do próprio corpo fica, também, descurado, pelo que algumas doenças físicas podem começar a desenvolver-se ou manifestar-se.

 

Todos estes factores contribuem para que, quando não devidamente acompanhadas e auxiliadas, as pessoas que sofrem de perturbações bipolares, tenham, de um modo geral, uma qualidade de vida pouco satisfatória.

 

Como Contribuir para melhorar a qualidade de vida ?

 

Assim, e quando se trata de ajudar profissionalmente pessoas com perturbação de humor,  a intervenção ideal tem uma natureza multidisciplinar, de forma a tornar possível uma actuação multifocalizada com incidência nas várias áreas que podem ser actualizadas,  em cada pessoa e,  assim,  potencializar uma melhoria da sua qualidade de vida.

Deste modo,  no âmbito mais restrito da Psicologia Clínica,  o apoio ao nível psicoterapêutico apresenta-se como fundamental; ajudar cada pessoa a auto-conhecer-se,  não apenas nos aspectos que respeitam a sua doença mas de uma forma mais global, como pensa, como sente, como enfrenta as situações, será uma forma de aumentar o domínio/controle da pessoa sobre o seu funcionamento. Ao mesmo tempo, o  aprofundamento do conhecimento sobre a forma como a doença se manifesta subjectivamente será um meio de “alarme”,  de alerta para possíveis recaídas ou momentos de maior desequilíbrio psicológico. É importante também alertar e tentar intervir junto daqueles que apresentam uma significativa resistência para a adesão ao tratamento já que, tendo períodos de euforia onde se sentem muito activos, preferem não prescindir deles, pois esta “sensação de actividade” acaba por preenchê-los mais do que a suposta “inactividade” (estabilidade), induzida pelos estabilizadores de humor.

O apoio psicoterapêutico, juntamente ao acompanhamento psiquiátrico com a respectiva adesão à medicação, tornam-se pilares estruturais significativamente determinantes para uma satisfatória qualidade de vida.

Paralelamente,  num âmbito mais alargado mas não menos importante,  a psicoeducação surge como uma intervenção de extrema importância, quer como medida de reabilitação quer como medida de higiene mental, e não apenas num registo individual mas também familiar. Assim,  o conhecimento da pessoa sobre a sua doença,  (sintomas, limitações,  recursos existentes,  etc.) torna mais apta a manter o controlo sobre si própria,  e pode funcionar como um redutor da ansiedade,  ao diminuir o imprevisto possível e o desconhecido (que se apresenta sempre como assustador). Ao mesmo tempo,  a aceitação da doença é fundamental,  já que a inexistência deste passo inviabiliza qualquer intervenção; não é possível ajudarmos quem não sente que necessita de ajuda.

 Ao nível da família, a explicação de todas as características e especificidades da doença e de tudo o que vem associado a ela dota esse sistema (desejavelmente um sistema de apoio) de mais ferramentas de suporte à pessoa com doença; por outro lado, muitas vezes o trabalho psicoeducativo pode ter uma função prévia de responsabilização e comprometimento do grupo familiar no processo terapêutico da pessoa,  o que é vital para a manutenção da qualidade de vida.

O trabalho com a família é complementar ao trabalho individualizado; esta intervenção mais alargada possibilitará à pessoa com doença manter um determinado nível de relacionamento interpessoal e afectivo,  na medida do possível, sabendo nós que o que seria desejável seria a existência de um clima familiar de boa qualidade afectiva,  que pudesse funcionar como modelo de relações e, ao mesmo tempo,  possuir uma função contentora e securizante.

Outra das áreas fundamentais numa intervenção vital de qualidade será a área profissional. A qualidade de vida implica um sentimento de auto-realização e concretização de alguns objectivos de vida (partilhados pela maioria dos seres humanos,  ainda que com devidas especificidades subjectivas). No caso da pessoa manter uma actividade profissional,  ou académica,  deve haver um apoio à sua manutenção,  quer através de uma intervenção de âmbito psicológico,  quer através de intervenções de outro nível como o auxílio nos estudos, na preparação para situações de stresse ou que possam tornar-se desorganizadoras,  etc. E se existir um ambiente de trabalho positivo,  onde o trabalho da pessoa com doença seja valorizado e as suas competências reconhecidas,  o sentimento de valorização e de reconhecimento pode contribuir para o aumento da auto-estima do próprio.

Não existindo uma actividade profissional,  o investimento na formação  e na actualização e desenvolvimento de competências substitui,  num primeiro momento,  a realização profissional. Qualquer pessoa tem potencialidades para se desenvolver e adquirir competências e ferramentas de trabalho. Incentivar o investimento formativo pode contribuir para que a pessoa se sinta “capaz e útil”,  ainda que devam salientar-se,  igualmente,  as limitações subjectivas,  caso as haja (de uma forma positiva),  no sentido de evitar expectativas irrealistas e pouco adequadas à realidade e que podem ter consequências desorganizadoras.

A qualidade de vida é um conceito da Organização Mundial de Saúde,  mas não pode ser entendida como um conceito individual,  isto é,  que tem em conta apenas as necessidades e capacidades de cada um,  uma vez que,  sendo o ser humano um animal social,  existem sempre factores externos,  quer interpessoais quer ambientais, que contribuem para a avaliação subjectiva da qualidade de vida.

Ainda há muito trabalho a ser feito,  nesta área. Os sistemas de apoio existentes (Sistema Nacional de Saúde,  instituições,  organismos,  etc.) funcionam muitas vezes ao nível do possível e não do necessário. É imprescindível aumentar os recursos existentes,  ao nível da intervenção em Saúde Mental,  não apenas com objectivos de tratamento e “reabilitação”, mas também ao nível da prevenção. A implementação de iniciativas e o desenvolvimento de processos  individuais,  sociais e institucionais,  que fomentem a higiene mental será,  no futuro,  a forma mais eficiente de obter, um nível desejável de qualidade de vida.